terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Olaudah Equiano - meu estudo no Mestrado






Olaudah Equiano afirma ter nascido em 1745, em terras igbo, onde hoje seria território nigeriano. Ele luta por essa identidade, que inclusive é questionada publicamente. Reforça este “lugar de memória”, pois tal elemento é sua herança como homem negro e constitui o sentimento de pertencimento, parte fundamental na construção da persona africana do gentleman Gustavus Vassa. [1]Em seu livro autobiográfico, publicado em 1789, ele se revela como filho predileto de família nobre, um trabalhador árduo, um homem apreciador das artes e da civilização, um aprendiz incansável, um religioso fervoroso, um defensor da liberdade para si e para seus conterrâneos, um aventureiro e um africano. E quem Olaudah chama de conterrâneos? Pessoas de sua etnia, africanos como um todo e os próprios britânicos. Equiano foi escravizado aos 10 anos aproximadamente, raptado nas cercanias de sua casa, levado à América do Norte, depois ao Caribe e finalmente para Inglaterra - terra que abraçou e que considerava também sua no fim da vida. O nome Gustavus Vassa foi imposto em tenra idade, tendo ele desembarcado na Inglaterra com essa marca.

Ele parte do “país” igbo, relatando costumes e práticas de seu grupo étnico, reafirmando sua humanidade – ali nasce Olaudah. Passa pela sua escravização, narra detalhadamente o processo da chamada Redenção – ou seja, a compra da liberdade por esforços próprios – e a luta na causa abolicionista, motivo que ele pontua como primordial na decisão de narrar-se – unindo-se, portanto, a Gustavus Vassa.Na verdade, um autobiógrafo tem, como todos nós, seu “eu” interno, que possui uma história. Os elementos são aqueles vividos pessoalmente, acontecimentos que acometeram seus diversos grupos sociais - seus conterrâneos africanos e seus conterrâneos britânicos - e constituem a memória de Olaudah, dando-lhe forma e conteúdo.

Ainda no início do século XVIII, havia poucos questionamentos públicos sobre a extinção da escravidão: a propriedade e o comércio de escravos era integral à economia comercial que assegurou a grandiosidade britânica.[1] Porém, em pouco mais de cinqüenta anos, o cenário sócio-econômico e político mudou e estes questionamentos começaram a tomar vulto. As primeiras ações para abolir o tráfico, aqueceram muitos debates e o movimento abolicionista ia se tornando um intento internacional. As investigações que vinham sendo efetuadas sobre o comércio de almas e as condições da escravidão começaram em 1783, alcançando ápice em 1792. Não é preciso lembrar que Olaudah escreveu exatamente neste período. Sua autobiografia, publicada por meio de subscrições, constituía uma parte do grande esforço panfletário pelo fim do tráfico. A narrativa vinha acompanhada por cartas, artigos de jornais e outros escritos, inseridos pelo autor para testar e atestar sua credibilidade. Portanto, os panfletos, poemas, ensaios sobre o tráfico entre 1780 e 1792, via de regra, se referem às teorias que já vinham prevalecendo sobre a cor, capacidade mental e civilidade.

Olaudah Equiano parecia ter plena consciência da rede internacional do abolicionismo e participava ativamente dela. Seu livro foi um instrumento dessa trama, junto com tantos outros intentos de mostrar a escravidão como um ato vil e um “mau negócio”. A prática de Olaudah e sua intenção de construir crescente credibilidade engendraram-se a partir de suas “pinturas da memória”, que delinearam matizes e traços num ondular entre pessoal e social. Há duas tônicas fundamentais em seu texto: a liberdade e a espiritualidade. As outras predominâncias textuais são a própria leitura, pela via da sensibilidade e civilização[2]; a capacidade industriosa, que retrata esforço contínuo em busca dos objetivos e o tema da compleição e da afirmação da capacidade do homem negro.

A auto-imagem de Olaudah Equiano – o Africano – não está isenta de negociação e transformação em função da alteridade e das próprias necessidades do ambiente no qual viveu. Ele provavelmente respirava e vivia toda discussão de seu tempo sobre a liberdade, moldada não somente em preceitos cristãos, mas também por disputas políticas.[3] A narrativa representa aquilo que Olaudah gravou, recalcou, excluiu, relembrou e é, como afirma Michael Pollack, o resultado de um trabalho de organização, como é toda autobiografia de cunho político. Os elementos que ele escolhe para se auto-retratar fazem todo o sentido e dão a perfeita ilusão de uníssono, estando diretamente ligado aquilo que ele traz e constrói como crença, portanto constituinte de sua identidade individual e coletiva. “A autobiografia supõe uma cultura que faz parte da expressão do “eu”” [4], portanto, implica em um envoltório social que permite e justifica sua forma e sua urgência. Num certo sentido está também impregnada de uma idéia de testemunho, de se transformar numa proposta de visão sobre uma dada situação desenrolada num determinado tempo e lugar.

A autobiografia seria uma resposta do indivíduo que se constrói no sentido contextual e pessoal; contextual porque o século XVIII é marcado, pela transformação da pergunta “O que é uma pessoa?” em “Quem sou eu?”. Primeiro Olaudah se afirma como pessoa, parte integrante da “criação” no sentido bíblico e depois, se constrói nos interstícios da pergunta “Quem sou eu?”, com indivíduo moderno. Segundo Im Hof, a Ilustração não significava somente “treinar um novo homem, mas um homem melhor, e “talvez seja por este motivo que a doutrina da virtude tenha ressurgido nesse período”[5]. Portanto, as virtudes individuais, o sentimento religioso, a filantropia, juntamente com a humildade, a moderação e a indústria (leia-se esforço pessoal) preenchiam as bases para o comportamento no contexto social, na família e no Estado.[6] Portanto, Equiano vivenciou muita das tensões inerentes ao cenário social e cultural das últimas décadas do século XVIII, inclusive aquelas que dizem respeito ao mercado editorial na Grã-Bretanha. Sobretudo, as inspirações e instigações que levavam o indivíduo a questionar-se e construir-se. A prática sócio-cultural da publicação de obras inseria-se em uma perspectiva maior, embora não se possa negar o intuito pessoal do autor. Equiano era um patriota, no sentido mais estrito do termo em relação ao século XVIII[7]. Ou seja, aquele indivíduo que deseja ser visto como possuidor de uma visão cosmopolita, livre de preconceito e engajado em atividades práticas para o benefício da comunidade como um todo.

O verdadeiro patriota deixaria sua marca pela credibilidade de seu exemplo. A Grã-Bretanha sofreu transformação profunda durante o século XVIII, em termos políticos, econômicos e mentais. A Ilustração Britânica, segundo os autores que a estudam, não foi apenas uma questão de rupturas epistemológicas, mas uma expressão de novos valores mentais e morais, novos cânones de gosto, modos de sociabilidade e visões sobre a natureza humana[8]. Segundo Roy Porter, o comércio de livros passou a ter peso na economia inglesa a partir do século XVIII, gerando grande circulação de vários tipos de literatura. O escritor teria um status, um envoltório que unia suas relações com o seu público leitor específico e a rede de contatos que tornava possível seu reconhecimento. O negócio de escrever e ler eram dois lados de uma moeda no capitalismo editorial. Basta lembrar que, na Inglaterra foram publicados cerca de 6 mil títulos em 1620, número que subiu para 21 mil durante a primeira década do XVIII e chegou a aproximadamente 56 mil na última[9].

A “The interesting narrative of Olaudah Equiano or Gustavus Vassa – The African – written by himself” de Olaudah Equiano foi um entre os muitos livros que participaram deste “boom” no mundo das letras impressas. O autor parece também mover-se continuamente entre os diversos nomes, representativos de sua experiência. O Olaudah africano, o Gustavus britânico, o “eu mesmo” que se constrói e o autor que mantém sua obra em constante renovação por meio das disputas políticas que explicita nas cartas publicadas antes da narrativa propriamente dita. Seu movimento é de expansão, de constante revisão de si -único e singular, o sujeito moderno - dentro dos pressupostos organizadores que seu meio social solicitava. O escritor de memórias não deixa de ser um criador, usando elementos de outros textos, lançando mão dos recursos retóricos que pudessem convencer seu leitor de sua indústria e de seu esforço para trilhar um caminho de ascensão.[10] Para além disso, a filosofia ilustrada que começou, então, a prestar atenção à psyche individual, emergiu da sinergia entre a filosofia de Locke e os modelos de subjetividade tocadas em gêneros menos rígidos como romances, belas letras, diários, cartas. De acordo com Porter, esta foi a dialética que teve implicações chaves para o individualismo emergente, a consciência de si, definição de si e o aperfeiçoamento de si.

A palavra autobiografia com esse formato e nesse sentido de apresentar o eu “descoberto” apareceu justamente naquele período. O gênero puritano tradicional de exame espiritual foi suplementado por modelos mais seculares de confissão. E o conceito chave para esse “eu” interior na Ilustração tardia era a sensibilidade.[11]Romances e narrativas humanitárias seriam um produto também desses conflitos, e estariam voltados em sua grande parte aos dilemas sociais e questões morais – “os mistérios da consciência foram psicologizados e filosofados em autobiografias e diários, bem como na ficção”[12].

Assim, o Olaudah Equiano que se revela tem sua individualidade preenchida, provocada e confrontada com as respectivas sociabilidades, bem como com aprendizados, recusas e crenças. Além disso, um livro, qualquer que seja seu intento, dialoga com a realidade presente. E o autor, que é um intérprete dessa realidade, muitas vezes não está comprometido com uma verdade no sentido restrito, mas com aquilo que sua historicidade o permite ver como tal. Percebe-se Equiano como um indivíduo simultaneamente uno e múltiplo, que experimenta temporalidades diversas[13]. Na perspectiva de uma linguagem política, que envolve diversos tipos de fontes, Olaudah assim se apresenta, ele não poderia ser coerente, entendendo-se coerência como linearidade. Uma vida não é linear, trata-se de uma sucessão nem sempre ordenadas das mais diversas possibilidades. As idéias dos autores, inclusive daqueles que escrevem sobre si, refletem a ambivalência das linguagens que lhes informam e impingem significados a tais expressões.[14]

A autobiografia pode ser vista como uma forma de justificativa e invenção de um novo sentido. O íntimo do indivíduo seria a fonte da verdade, de onde vem a organização do mundo. Por esse motivo, Contardo Calliagaris considera a escrita de si crucial da modernidade, uma necessidade cultural, no qual o sujeito subordina a verdade à sinceridade. O ato autobiográfico seria algo culturalmente e historicamente datado – um fenômeno moderno e ocidental. Como Calliagaris aponta “É uma escrita autobiográfica que implica numa cultura na qual o indivíduo situe sua vida acima da comunidade a qual pertence... cultura essa na qual importe ao indivíduo sobreviver pessoalmente na memória de outros.”[15]Cada autor de autobiografia, portanto, remontaria os elementos da vida individual e reagruparia num todo compreensivo. A autobiografia, segundo Georges Gusdorf, é devotada à defesa, glorificação, causa política... é limitada ao setor público da existência. [16] Esse esforço recomporia e reinterpretaria uma vida em sua totalidade, justamente porque obriga o indivíduo se situar “no que é” na perspectiva do que “eu tenho sido”.

Portanto, para este autor, trata-se do substrato da experiência.[17]Olaudah se procura através de sua história e se afirma a cada nova aventura... “a autobiografia como um trabalho de arte e ilustração... aquilo que o indivíduo acredita e deseja ser e ter sido”[18] De um modo geral, Equiano responde à pergunta “como me tornei quem eu sou?” [19]. Para tanto, ele narra sua infância, o aprisionamento, a vida como escravo, os seus costumes e a sua cultura – africana e britânica. Ele tenta mostrar-se ao leitor como um homem de conquistas, que se encontra na encruzilhada entre a efervescência dos debates contra o tráfico atlântico de almas e as possibilidades latentes desses discursos contra a escravidão: Importante para o historiador seria exatamente a ótica assumida pelo registro e como seu autor a expressa... Ele se posiciona como um homem de refinada moral cristã, um africano ilustrado de sentimentos pautados pela polidez britânica. Um homem que reconhece os costumes de seu grupo de origem e os valoriza. Não nos esqueçamos, porém, de que as autobiografias e os outros relatos escritos não são atos inocentes da memória, mas antes tentativas de convencer, formar a memória de outrem... quando lemos narrativas de memórias, não lemos a própria memória mas suas transformações através da escrita[20].

As linhas escritas por Equiano introduzem diversos personagens, inclusive as personas que ele mesmo cria, evidenciando que o discurso autobiográfico implica num desejo de reconhecimento que não existe no discurso de ficção. Ou seja, àquele que escreve sobre si pretende a aprovação não somente do seu texto, mas para sua pessoa e para a sua vida. Trata-se de um ato de convencimento. Na autobiografia uma “coleção de vozes” e de “memórias” relacionais se misturam. A polifonia de sujeitos se entrechocam, talvez porque ele seja um híbrido em qualquer lugar que vá. Os valores nos quais as representações se assentam são variáveis, suas significações dependem dos grupos sociais nas quais estão inseridas. Os leitores são fundamentais para Olaudah, principalmente porque ele escreve um livro sobre si, deixando de fora tudo que pudesse confundir ou desviar, é um discurso engajado, simboliza e impinge significado. O conteúdo representativo no fenômeno cognitivo que Olaudah expõe, abarca linguagem, discurso, práticas, de forma que constrói um diálogo entre o Equiano africano e o Gustavus englishman; o religioso e aquele que se pretende no pressuposto racional; o Olaudah homem de virtudes que transita entre a sociedades branca e negra que, por vezes, o aceitam e o rejeitam. Tal livro, tal panfleto político, possui objetivos claros, não havendo lugar para grandes elucubrações emocionais. Entretanto, não é um relato frio e distante. São as suas realizações, que o autor credita como valorosas, que marcam o sentido de contar-se, porque nesse recontar há construção e possibilidade. Como intento político tido e vertido para obter escuta para uma causa política, seu discuros teria de estar investido de autoridade e veracidade. E Gustavus Vassa ou Olaudah Equiano reuniu todos os esforços nessa empreitada.





Op. Cit. p. 358.

A acepção da palavra civilizar no século XVI seria aquela de abrandamento de costumes e maneiras dos indivíduos, nas idéias de Montaigne é essa idéia que surge. No sentido moderno, a palavra civilização se entrelaça com a idéia de progresso. Na Inglaterra, influenciado por Adam Smith, Fergunson foi o primeiro a usar a palavra neste sentido em 1752. Civilização passaria a ser um processo e não um estado, posicionado em sentido antinômico à natureza, selvageria, barbárie. Polir é civilizar os indivíduos, suas maneiras, sua linguagem. (STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 2001. p. 16)

POLLACK, Michael. op.cit. pg. 5.

LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMON, René(org). Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed UFRJ/FGV, 1996. p. 141-185.

op. cit. p. 213.

Cf Im Hof.

O conceito de patriota que está aqui empregado inspira-se em IM HOF, Ulrich. The Enligtenment – an historical introduction. Oxford: Blackwell Publishers, 1997, p. 152.

PORTER, Roy. Enlightenment. London: Penguin Books, 2000.

op. cit. p. 73.

ALBERTI, Verena. Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro vol. 4, n. 7, 1991, p. 66-81.

op. cit. p. 278.

op.cit. p. 291.

GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de Si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de Si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 13.

BEVIR, Mark. Mind and method in the history of ideas. History and Theory. Studies in the Philosophy of History. Middletown, 36(2): 167-189, 1997. p. 170.

CALLIAGARIS, Contardo. Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: v. 11, n. 21, 1998. p. 5.

GUSDORF, Georges. Conditions and limits of autobiography. In: OLNEY, James. (org). Autobiography: essays theoretical and critical. Princeton, New Jersey, USA: Princeton University Press, 1980. Pag. 28-49. p. 36.

op. cit. p. 38.

op. cit.p. 45.

DELON, Michel. Propôs recueillis avec Philipe Lejeune – Pour l´autobiographie. Magazine Littéraire – Les écriture de moi, Paris, n. 409, p.20-23, Mai 2002.

BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 74.

POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. p. 201.

Op. Cit. p. 358.


Atenção 2

Luz





Delicadeza

Atenção

Há uma meditação que propõe a presentificação total do olhar. Fiquei horas para conseguir, com minha maquininha digital, colher a sutileza das cores das folhas

Árvores, mais uma vez



"Quando uma árvore é cortada, renasce em outro lugar. Quando eu morrer quero ir para este lugar, onde as árvores vivem em paz". (Tom Jobim)